Psicopolítica

Notas sobre "Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder" (2017), de Byung‑Chul Han

Byung-Chul Han, enquanto escritor e filósofo, tem uma qualidade admirável: escrever de maneira clara e objetiva sobre temas complexos. Ainda assim, foi um livro trabalhoso pela necessidade constante de separar o joio do trigo. Contudo, uma vez identificada a causa do problema, a leitura foi bastante proveitosa. A obra é dividida em treze seções/ensaios: (1) crise da liberdade; (2) poder inteligente; (3) a toupeira e a serpente; (4) biopolítica; (5) o dilema de Foucault; (6) a cura como assassinato; (7) choque; (8) o amável grande irmão; (9) o capitalismo da emoção; (10) gamificação; (11) big data; (12) para além do sujeito; e (13) idiotismo.

De maneira resumida, no desenvolvimento de algumas teses, Byung-Chul defende que o neoliberalismo opera a transição: da sociedade da biopolítica (controle do corpo) para a sociedade da psicopolítica (controle da mente); do poder disciplinar (negativo e violento) para o poder inteligente (positivo e internalizado); da produtividade pela exploração da racionalidade para a produtividade pela exploração da emoção (gamificação do trabalho e da vida, sistema de recompensas); do sujeito-trabalhador (classista, proletário) para o sujeito-projeto (empreendedor de si); da exploração do homem pelo homem (explorador e explorado) para a exploração do homem por si mesmo (“autoexploração”); do modo de produção material (objetos materiais) para o modo de produção imaterial (“capitalismo da emoção/like”, sociabilidade e comunicação são exploradas); da memória humana (esquecimento e narrativa) para a memória digital (não-esquecimento e quantificação); das forças repressivas contra a expressão (censura) para as forças sedutoras de expressão (redes sociais); da vigilância extrínseca (serviços secretos) para a vigilância intrínseca (autoexposição); do panóptico de Bentham (prisão e isolamento, controle óptico) para o panóptico digital (liberdade ilusória e comunicação, big data).

O joio é que, em várias das teses apresentadas, Byung-Chul não opera em termos de relação dialética entre os elementos, ou sequer de aprofundamento, mas sim em termos de transformação completa. Diante disso, nas 11 primeiras seções, o neoliberalismo assume um caráter absoluto e determinístico, gerando algumas conclusões descoladas da realidade mesmo que baseadas em meias-verdades. Na minha leitura, a raiz desse problema provém da constatação de que o neoliberalismo “eliminou a exploração alheia da classe trabalhadora”, de sorte que não existiria proletariado (uma classe explorada por outra) no neoliberalismo. Ora, uma coisa é constatar que as novas técnicas de poder do neoliberalismo operam no sentido de omitir (!) o antagonismo e a luta de classes, “internalizando a exploração” nos trabalhadores e afetando os indivíduos “em nível pré-reflexivo”, outra é tomar isso como um aspecto absoluto/determinístico da realidade. Ou seja, Byung-Chul apaga completamente a existência da luta de classes dentro da sociedade neoliberal, o que o leva a revisar Marx (aliás, outros também, inclusive Foucault). Para Byung-Chul, o neoliberalismo transforma os trabalhadores em empreendedores de si através da “autoexploração” (meia-verdade) ao ponto de o antagonismo de classes, entre explorados e exploradores, ter sido eliminado (falso).

Para elucidar a problemática com apenas um exemplo concreto: Byung-Chul descreve a gamificação do trabalho (sistema de recompensas, produtividade pela exploração da emoção etc.) e a “autoexploração” (empreendedor de si) da lógica neoliberal, isto é, aspectos constatáveis na realidade dos entregadores por aplicativos (sistema de pontos, ausência de vínculo empregatício etc.); contudo, não existe escopo na teoria proposta para contemplar a organização classista e concreta dos entregadores na luta contra a (auto)exploração, reivindicando melhores condições de trabalho e explicando com todas as letras: “ninguém aqui é empreendedor, nós somos força de trabalho”. Em outras palavras, a prática daqueles que lutam de maneira classista e antagônica contra a exploração imposta pelo capital em favor da burguesia, classe dominante por deter a propriedade dos meios de produção (importante lembrar), coloca em cheque o derrotismo revisionista de Byung-Chul. Dito isso, no que tange à exploração do trabalho no neoliberalismo, uma síntese/epígrafe complementar seria: “proteja-me do que eu preciso fazer para sobreviver”; por mais que, em relação à pretensa liberdade digital e ao big data, a epígrafe da obra permaneça pertinente: “proteja-me do que eu quero” (Jenny Holzer).

Discordâncias à parte, além da gamificação da vida e do trabalho, enfatizo os trechos sobre o eu-quantificado (quantified self) e as aplicações do big data, via inteligência artificial, como forma de dominação neoliberal nas mais variadas esferas da vida. O imperativo na era digital é tudo virar dado e informação, de tal forma que, através do eu-quantificado (seguidores, likes, n.º de amigos) e do big data, o digitus começa a tomar o lugar do phallus. Nesse sentido, a sociabilidade e a comunicação humanas, sob o pretexto de uma liberdade ilusória do neoliberalismo, desempenham um papel central na produção das massas de dados e informações. Diante disso, a mineração via inteligência artificial dessa imensa quantidade de dados que produzimos diariamente é capaz de criar uma fiel “versão digital/multidimensional de nós mesmos”, influenciando e prevendo nosso comportamento e, até mesmo, acessando nossos pensamentos e desejos mais íntimos. Nesse contexto, até nosso inconsciente é explorado, tanto o individual quanto o coletivo. Através do big data e da inteligência artificial, o neoliberalismo conseguiu fundir exploração, comercialização, informação, vigilância e dominação (a junção entre Big Brother, Big Data e Big Business, nos termos do Byung-Chul). Um exemplo concreto é a influência do big data de uma empresa privada nos rumos das eleições de 2016 nos EUA. Não obstante, a título de menção, Byung-Chul realiza uma das melhores explicações metafóricas sobre mineração de dados e big data. Ele faz uma alusão entre dataísmo e dadaísmo que, posteriormente, desdobra-se em uma metáfora para refletir sobre o poder e as implicações da black box da inteligência artificial (por mais que ele não aborde esse conceito diretamente no livro).

Por fim, nas duas últimas seções, Byung-Chul suspende o caráter determinístico da sua análise do neoliberalismo e propõe uma saída filosófica para combatê-lo: o idiotismo. Explicando de maneira reducionista, ser idiota no sentido socrático da postura do saber que não sabe nada. Para Byung-Chul, a inteligência significa “escolher-entre” dentro da lógica de um sistema. Assim, a inteligência não seria inteiramente livre por ter que escolher conforme aquilo que o sistema oferece. O idiotismo, por outro lado, seria completamente livre por ser herético e alheio (“outsider“) à imanência sistêmica da inteligência. O idiota, pela imanência do vazio, fica em silêncio e em solitude e, por isso, encontra a singularidade do que “realmente valha a pena ser dito” (num sentido negativo [“subversivo”] em relação ao sistema). O idiota, portanto, não existiria enquanto sujeito do sistema (contrapondo o individualismo do neoliberalismo), ele seria mais como “uma flor: uma existência simplesmente aberta à luz”, sendo caracterizado não pela individualidade, mas pela singularidade. Apesar de não ser explicitado diretamente, o idiota lembra um pouco Zarathustra ou um monge budista, o que faz sentido tendo em vista as referências teóricas dessa saída filosófica proposta pelo Byung-Chul: Nietzsche, Deleuze, Clément Rosset e Botho Strauss.

Em conclusão, é um livro relevante para a compreender as novas técnicas de poder e de exploração do neoliberalismo, mas que, ao meu ver, não contribui incisivamente para a superação dessa dominação, para a transformação radical dessa realidade, dada o derrotismo de Byung-Chul ante à famigerada máxima da tese onze. Por mais que haja reflexões interessantes do ponto de vista estritamente filosófico, não conheço qualquer povo oprimido que tenha combatido sua exploração, de maneira eficaz, conforme proposto pelo idiotismo. O mesmo, contudo, não pode ser dito em relação à tão criticada práxis marxista. A luta organizada de maneira classista foi historicamente mais efetiva rumo à valorização da vida e à emancipação humana.

Nota de pé de página para os amantes do audiovisual: não existe um episódio de Black Mirror sequer que não seja contemplado por algum trecho desse livro. A realidade nua e crua de todos nós que somos explorados, até digital e psicologicamente, pelo capital. Alguns excertos:

The capitalism of Like should come with a warning label: Protect me from what I want. (pg. 16)

Under neoliberalism, the technology of power takes on a subtle form. It does not lay hold of individuals directly. Instead, it ensures that individuals act on themselves so that power relations are interiorized – and then interpreted as freedom. Self-optimization and submission, freedom and exploitation, fall into one. (pg. 23)

The neoliberal regime is in the course of inaugurating the age of exhaustion. Today, the psyche itself is being exploited. (pg. 24)

Neoliberal psychopolitics is dominated by positivity. Instead of working with negative threats, it works with positive stimuli. Instead of administering ‘bitter medicine’, it enlists Liking. (pg. 28)

Today’s society of information is not characterized by destroying words, but by multiplying them without end. (pg. 29)

In the digital panopticon, the illusion of limitless freedom and communication predominates. Here there is no torture – just tweets and posts. Nor is there a mysterious ‘Ministry of Truth’. Transparency and information have taken the place of truth. The new conception of power does not involve controlling the past, but steering the future psychopolitically. (pg. 30)

The gamification of work exploits homo ludens. The player subjugates him- or herself to the order of domination in the very act of playing. Today, the gamification logic of ‘Likes’, ‘Friends’ and ‘Followers’ means that social communication is also being plugged into and subordinated to a game mode. The corollary of the gamification of communication is its commercialization. That said, this process is destroying human communication. (pg. 38)

Belief that life admits measurement and quantification governs the digital age as a whole. ‘Quantified Self’ honours this faith too. The body is outfitted with sensors that automatically register data. (pg. 45)

Who am I? ‘Quantified Self’ represents a Dadaist technology too; it empties the self of any and all meaning. The self gets broken down into data until no sense remains. (…) The motto of Quantified Self is ‘Self Knowledge through Numbers’. (pg. 46)

Big Data never forgets anything at all. For this reason alone, the digital panopticon is much more efficient than Bentham’s. (pg. 47)

For instance, at a given stage of pregnancy, a woman may crave a particular product – yet this impulse marks a correlation of which she remains unaware. She buys the item, but she doesn’t know why. That’s how it is. Conceivably, this that’s-how-it-is (Es-ist-so) exists in psychic proximity to the Freudian id (Es), which escapes the ego and consciousness. In this light, Big Data is making the id into an ego to be exploited psychopolitically. If Big Data has access to the realm of our unconscious actions and inclinations, it is possible to construct a psychopolitics that would reach deep into our psyche to exploit it. (pg. 48)

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