Até o glorioso fim
A sabedoria conciso-ideogramática de uma vida, das palavras partida/s de quem nunca deixou de manuseá-las com a ternura do fio da lâmina samurai.
Ensaio de Paulo Leminski, publicado em 1989 na Folha de Londrina, meses antes de sua morte.
Corpo não mente
Quando Francisco Xavier, o missionário jesuíta, aportou no Japão, na crista das navegações, sua catequese produziu milhares de conversões e o catolicismo começou a se espalhar pelo país.
Nas cartas que escreveu para seus superiores em Roma, Xavier descreve com júbilo os progressos do apostolado na Terra do Sol Nascente. Nas mesmas cartas, porém, queixa-se contra os adeptos de uma seita chamada zen (deve ser a primeira menção ao zen na Europa). Não consigo converter nenhum dos adeptos dessa seita, Xavier confessa. Não mostram nenhum respeito pelas coisas sagradas, riem de tudo e debocham dos símbolos de nossa religião, prossegue ele.
A razão secreta do insucesso de Xavier com os praticantes do zen reside na radical diferença entre as relações corpo/mente (ou corpo/alma) no catolicismo e no zen. Todas as práticas zen (o zen é – sobretudo – uma prática) visam atingir o ponto de fusão corpo/mente, aquele lugar alfa onde essa distinção (vista como erro e ilusão) não seja mais possível. Visariam, de certa maneira, uma espiritualização do corpo e uma corporificação da mente e do espírito.
Isso é muito visível nas artes marciais, judô, kendô, caratê, aikidô, todas empapadas de zen. Quem pratica artes marciais, aprende logo que o corpo não é uma máquina governada por um comandante genial chamado mente. Na hora de aplicar um golpe, sente-se claramente que o corpo pensa. Impossível não ver os paralelos entre essa experiência e a vivência do sexo que, para ser realizado plenamente, exige um momento de fusão total entre um corpo que sente e uma mente que dirige. Não se pode obter uma ereção ou um orgasmo pensando em reforma tributária…
Ao tentar converter superiores da seita zen, com a frase básica “salve tua alma”, Xavier esbarrou num obstáculo intransponível: os monges zen não podiam conceber que a alma fosse uma coisa que a gente possuísse e pudesse ter um destino distinto do corpo, suas peripécias, misérias e esplendores. A arte de um judoca ou de um carateca não é “una cosa mentale”, como disse Leonardo da pintura. É essencialmente unitária, anterior ou posterior à dicotomia corpo/mente que impregna, sub-repticiamente, todo o pensamento ocidental de Descartes para cá.
As origens desse divórcio no indissociável são, claro, de natureza religiosa: a mente do racionalismo ocidental é a filha leiga da alma salvável no cristianismo. Sem direito a além-túmulo, porém. Mas não pense que coisa tão grave teve raízes apenas filosóficas na mente de algum pensador isolado. A sociedade urbano-industrial, através dos métodos de trabalho que impôs, promove a dissociação corpo/mente mais do que qualquer tratado de metafísica.
É uma força desagregadora, destribalizante, atomizante. Não há lugar para o corpo na grande fábrica, a não ser como a unidade de trabalho, nunca como lugar de prazer e satisfação sensorial. E a alma toma os novos nomes de “habilitação profissional”, “treinamento especializado”, abstrações no seio dessa imensa abstração que é a anônima sociedade industrial-urbana.
Eu mando, você obedece
Escravos e senhores. Nobres e servos. Patrões e empregados. Técnicos e operários. Nada distingue mais o homem dos animais do que a divisão de trabalho, nossa grande força e também a fonte de nossas fraquezas.
Foi através da divisão do trabalho que o homem multiplicou seus poderes sobre a natureza numa velocidade fantástica: há apenas 30 mil anos tudo o que tínhamos para enfrentar a hostilidade do meio ambiente eram armas de pau, pedra e osso e vestimentas de peles de animais. Neste prazo biologicamente curtíssimo, saltamos da lança de madeira para o computador, a eletricidade, a engenharia genética e a energia nuclear. Isso só foi possível porque o homem, em todas as latitudes, especializou determinados grupos da sociedade em tarefas específicas. Qualquer tigre sabe fazer tudo o que qualquer tigre faz, e nada além disso. Todo tigre é um inteiro. Nós somos fragmentados. Uns plantam, outros vendem. Uns mandam, outros obedecem. Uns celebram cerimônias aos deuses, outros carregam pedras para erguer pirâmides, templos e catedrais.
Quem não vê que a dicotomia mente/corpo é uma projeção e uma decorrência da divisão do trabalho, a divisão interiorizada em nós? A mente é uma metáfora da classe dirigente servida pelo corpo.
A divisão do trabalho é o verdadeiro Pecado Original, aquele que nos expulsa do paraíso e nos lança na grande aventura da vida e do mundo. A serpente sugere, Eva colhe o fruto proibido, Adão o come… Integrar mente e corpo é voltar ao paraíso que só conseguimos experimentar em momentos privilegiados: a pessoas desintegradas, o paraíso também é vivido sob a forma de fragmento.
Um dos momentos mais radicais da divisão do trabalho está na separação entre trabalho braçal e intelectual. Essa divisão começa no mundo religioso. Sacerdotes e agricultores, monges e guerreiros, padres e fiéis, são o modelo remoto da atual divisão entre técnicos e teóricos diante da mão-de-obra.
E certas práticas religiosas como o jejum, a castidade, o silêncio e a busca do desconforto físico concorreram poderosamente para acelerar a cisão entre corpo e mente. Não seria exagero imaginar que a noção da “alma” tenha nascido dessas práticas onde o corpo é tratado como um inimigo, fera que deve ser domada, humilhada e reduzida a ser uma montaria dócil sob as rédeas do “Espírito”.
No século passado, quando começa o mando industrial de hoje, aparece a figura do “intelectual”, o homem/mente por excelência, vivendo apenas na atmosfera rarefeita do “mundo das idéias”. Com o intelectual, seus afins, o técnico, o especialista, o pensador…
Entre um corpo e uma mente, mil anos-luz de vazio onde se criam monstros e demônios, duendes e neuroses. Os demônios se chamavam Lúcifer, Belzebu, Asmodeu, Belial. Hoje chamam-se neurose, paranoia, esquizofrenia, mania, ansiedade. É perigoso separar aquilo que, por natureza, é uno e inteiro.
De volta à unidade
Retorno ao paraíso perdido, a re-união mente e corpo não pode sequer ser sonhada, em termos integrais. Essa estranha entidade que é o ser humano, que somos nós, resulta irremediavelmente cindida.
O próprio exercício disso que se chama “razão” parece estar ligado, carne e unha, com a dissociação entre uma metade que “pensa” e um corpo que obedece. Estamos condenados à razão. Mas é essa mesma razão dissociativa que pode nos aproximar, por momentos iluminados, da unidade perdida, em algum ponto-anos-luz no espaço/tempo.
Nós buscamos essa unidade na prática do lúdico e do erótico, na arte, no esporte, no amor e no sexo. Nessas áreas do in-utensílio, a vida além da tirania do lucro e da utilidade. Ao brincar e jogar, estamos salvos, livres. E de volta.
Para o zen, é na própria vida cotidiana que está o segredo. É preciso resgatar a grandeza infinita dos gestos simples e “elementares”. Cuidar da vida. Curtir a minúcia. Lavar a própria roupa. A louça. Arrumar a casa. Fazer sua comida. Tomar banho como quem realiza um ato sacro. Recuperar o prazer da prática dos atos primários. Saber que ser matéria, caralho e buceta, boca e estômago, é uma dignidade e um esplendor.
Dá trabalho.
Mas, para brilhar, as estrelas têm que arder, até o glorioso fim.
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