Em uma tradução menos comercial, “O homem unidimensional: estudos sobre a ideologia da sociedade industrial desenvolvida”, publicado em 1964. Um livro com muitos pontos fortes. Marcuse é um pensador dialético por excelência. Se por um lado, ele demonstra como a tecnologia modifica os instrumentos de produção e promove avanços para a emancipação humana, por outro, ele avalia como a tecnologia é parte de uma nova forma de controle, impactando: (i) o trabalho; (ii) o universo político; (iii) a consciência; (iv) o universo de locução; (v) a cultura; e (vi) o pensamento.

Nesse sentido, abreviadamente, essa nova forma de controle é a sociedade unidimensional e o pensamento unidimensional. É a ideologia da sociedade industrial desenvolvida – que é em uma de suas formas o “Estado de Bem-Estar Social”. Em outras palavras, uma sociedade e um pensamento que se reafirmam nas mais variadas esferas (particularidades) de maneira positiva, racionalizando o irracional e harmonizando/suprimindo o pensamento negativo (subversivo), afastando, assim, a potencialidade (concreta) de outras formas alternativas de sociedade (de transformação do real).

No geral, achei dois aspectos especialmente interessantes. O primeiro é que Marcuse não deixa de reafirmar que o modo social de produção, e não a técnica, é o fator histórico básico. O segundo é que a questão tecnológica não se trata de simples negação ou afirmação em abstrato, uma tecnologia pode servir, ao mesmo tempo, a uma sociedade capitalista ou socialista; contudo (!), isso não implica que as transformações tecnológicas e científicas não sejam materializações dos valores de determinada sociedade. Ou seja, os valores de uma tecnologia não são meros complementos ou externos a ela, mas a própria tecnologia é a materialização desses valores. O conhecimento científico idem.

Por fim, um relato sobre a importância do pensamento dialético que perpassa o livro. Outro dia acompanhava uma discussão na internet em que ambos os lados estavam certos e errados ao mesmo tempo. Certos porque apontavam especificidades reais sobre o que discutiam. Errados porque negavam as especificidades apontadas entre si por, aparentemente, serem excludentes. Ou seja, por negarem o contraditório do que o outro dizia, perdiam de vista a totalidade mais complexa. Deixavam, assim, uma parte da realidade para trás, incompreendida. Caíam, então, numa espécie de batalha discursiva sem fim. Enfim, apesar de ser contra-intuitivo (afinal a sociedade capitalista nos condiciona estruturalmente a ter um pensamento unidimensional), é perfeitamente possível pensarmos a realidade através do contraditório. E, apesar de existirem vários, talvez este seja o maior ensinamento que se possa tirar da obra: a recusa do pensamento unidimensional e a prática de um pensamento dialético. Feito que Marcuse realiza com método e maestria ao longo da obra.

Aliás, a última página é sinteticamente excepcional:

Contudo, por baixo da base conservadora popular está o substrato dos párias e estranhos, dos explorados e perseguidos de outras raças e de outras cores, os desempregados e os não-empregáveis. Eles existem fora do processo democrático; sua existência é a mais imediata e a mais real necessidade de por fim às condições e instituições intoleráveis. Assim, sua oposição é revolucionária ainda que sua consciência não o seja. Sua oposição atinge o sistema de fora para dentro, não sendo, portanto, desviada pelo sistema, é uma força elementar que viola as regras do jogo e, ao fazê-lo, revela-o como um jogo trapaceado. Quando eles se reúnem e saem às ruas, sem armas, sem proteção, para reivindicar os mais primitivos direitos civis, sabem que enfrentam cães, pedras e bombas, cadeia, campos de concentração e até a morte. Sua força está por trás de toda manifestação política para as vítimas da lei e da ordem. O fato de eles começarem a recusar a jogar o jogo pode ser o fato que marca o começo do fim de um período.

Nada indica que será um bom fim. As aptidões econômicas e técnicas das sociedades estabelecidas são suficientemente vastas para permitir ajustamentos e concessões aos subcães, e suas forças armadas suficientemente adestradas e equipadas para cuidar de situações de emergência. Contudo, lá está novamente o espectro, dentro e fora das fronteiras das sociedades avançadas. O fácil paralelo histórico com os bárbaros ameaçando o império da civilização prejulga a causa; o segundo período de barbarismo bem pode ser o império continuado da própria civilização. Mas a probabilidade é que, nesse período, os extremos históricos possam novamente se encontrar: a mais avançada consciência da humanidade e sua força mais explorada. Nada mais é do que uma probabilidade. A teoria crítica da sociedade não possui conceito algum que possa cobrir a lacuna entre o presente o seu futuro; não oferecendo promessa alguma e não ostentando êxito algum, permanece negativa. Assim, ela deseja permanecer leal àqueles que, sem esperança, deram e dão sua vida à Grande Recusa.

No início da era fascista, Walter Benjamin escreveu:

Nur um der Hoffnungslosen willen ist uns die Hoffnung gegeben.

Somente em nome dos desesperançados nos é dada esperança.